Texto publicado originalmente em dezembro de 2020.
🎄
Mãe, quando vamos armar a árvore de Natal? Mãe, mãe...Mãe!
- Ai menina! Para de me encher! Já falei que só quando a mãe limpar a casa!
Madalena já estava ficando impaciente. Há três dias do Natal, ela não queria se atrasar para poder ver o brilhinho das bolinhas coloridas trazendo alegria ao pequeno barraco localizado estrategicamente à beira do laguinho. Ela assim chamara ingenuamente o esgoto que corria a céu aberto na favela e, pelo qual, pelo posicionamento, sentia ser a sua casa a mais privilegiada.
Este ano as coisas seriam diferentes. Ela não perderia tempo. Imbuída de determinação, digna de uma menina de 5 anos, e com a vassoura em punho, naquela tarde enquanto aguardava a mãe voltar do trabalho, Madalena pôs-se a limpar a casa.
Ao retornar, como uma transmissão de pensamento sua mãe trouxera novas bolinhas adquiridas na lojinha de um e noventa e nove.
Aquele entardecer foi o apogeu da alegria para a menina. Enquanto armava a árvore mais linda do seu universo, e olha que ela já havia visitado todos os barracos da vizinhança para se certificar disso, ela sublimava contentamento ao observar os brilhinhos de cada bolinha suspendida da velha caixinha de sapato, a qual ela apelidou carinhosamente de “meu tesourinho”.
O dia fora perfeito e para coroá-lo, sua mãe lhe fizera um carinho na cabeça na hora de dormir. Puxa! O que melhor poderia lhe acontecer? Naquele dia Madalena se sentiu amada. Nada poderia roubar a sua felicidade. Nada!
Essa doce lembrança a acompanharia por anos. Sua última e única lembrança antes da violência cometida contra ela, pelo padrasto em plena noite de Natal, culminando com seu afastamento de sua mãe e o seu encaminhamento para um abrigo.
Logo depois, sua mãe seria presa por tráfico de drogas; infortunadamente o destino percorrido por muitas mulheres que, mediante a necessidade de angariarem algum recurso, se submetem a este salvatério.
Nem sempre foi assim. Sua mãe sonhara em ser escritora. Assim como Madalena, tinha mania de pôr nomes carinhosos nas coisas e com uma curiosidade aguçada, folheava as revistas nas casas as quais ajudava a limpar com a sua mãe.
Na escola, era figura conhecida na biblioteca. Se orgulhava de mostrar a carteirinha, que cheia de rabiscos, reluzia a todos seus inúmeros empréstimos e o quanto gostava de ler. Aliás, deste hábito veio o nome da sua filha: Madalena. Inspirada pelo livro “Madalena pipoca” ela assim denominou sua bebezinha por não parar de pular em sua barriga. O sonho se desfez ao apreciar o resultado positivo de sua gravidez aos dezesseis anos...
Durante dias Madalena permaneceu imóvel em frente a janela de vidro. Suas lágrimas escorriam por sua face e ao fundo podia-se ouvir a vozinha da sua companheira de quarto que ao tentar consolá-la, com a sutileza típica das crianças, dizia: Ninguém vai vir! Eu já cansei de esperar.
Seus sentimentos a corroíam. Queria poder dizer ao mundo que a culpa não era dela. Em suas tentativas anteriores de molestar a menina, o padrasto lhe dissera que se alguém descobrisse iria culpá-la e ela então seria separada da sua mãe. Agora seu superego a condenava. Eu não tive culpa! Por favor, eu não tive culpa! Sua voz era ouvida ecoando pelo corredor do abrigo enquanto permanecia deitada em posição fetal em sua nova e impessoal caminha.
Essa cena se repetiu durante infindáveis dias.
Aos poucos a menina cedeu seu lugar junto a janela, para outras meninas que chegariam ao abrigo e, após anos, já se sentia forte para acalentá-las.
Madalena não está sozinha: A cada hora, três crianças são abusadas sexualmente no Brasil. Cerca de setenta e cinco por cento dos abusos ocorrem contra meninas e quarenta por cento na faixa etária de zero a onze anos. Infelizmente, grande parte (setenta por cento) ocorrem em casa por àqueles que deveriam protegê-las.
Casos como o de Madalena tonificam o índice de crianças morando em abrigos no Brasil. Somente no ano de dois mil e dezoito, este número já alcançava a marca de quarenta e sete mil, das quais somente dezoito por cento estavam aptos à adoção.
Em dois mil e vinte encontramos Madalena no refeitório.
Agora aos doze anos enquanto se alimenta, fita a TV, que ao promover o shopping local, apresenta um cenário lúdico e cheio de luzinhas, despertando na menina a doce lembrança dos últimos momentos com a sua mãe.
Ela se recusara, ano após ano, a olhar para as bolinhas coloridas dispostas irregularmente na árvore de natal do abrigo. Nestas alturas, o rosto de sua mãe já lhe é imagem ábdita, restando-lhe apenas o sentimento do último afago recebido naquela noite pouco antes de dormir.
Um grande amor acompanhado de gratidão lhe insurgiu e, sentindo a presença de Deus através daquele sentimento, foi desperta pelos gritos das amigas que ao adentrarem ao refeitório diziam: Nós vamos para uma festa!
Hã? Que? Dizia, tentando entender alguma coisa, enquanto suas amigas a sacudiam e gritavam de alegria.
- Sim, nós vamos numa festa na casa do presidente!
- Meu Deus! É verdade isso?
Há tanto não sentia algo que lhe trouxesse uma motivação, que nem conseguia depurar a sensação.
A manhã era de sol. Ao vislumbrar o cenário colorido pelos brinquedos dispostos no imenso gramado e cercado pela bela arquitetura de Niemeyer, se sentiu importante por alguns instantes...Desejando que o tempo parasse, imaginou como seria viver em um ambiente tão bonito...
Com o coração exultante, se afastou por um momento para contemplar o lago Paranoá e suas águas límpidas, as quais eram um pouquinho diferente do seu laguinho particular.
Sentiu paz.
Suas doces lembranças ressurgiram e agora, não mais com a sensação de pesar, pôde se alegrar com este sublime presente que a vida lhe trouxera.
Enquanto depurava este momento na sua mais ampla definição, olhou para o céu e prometeu a Deus que se esforçaria para que um dia tivesse condições de impedir que outras histórias cursassem de forma semelhante a sua. Pediu um sinal que a fizesse testificar este sentimento e, voltando para a festa se uniu aos demais para celebrar.
Ao final do dia, quando todos exaustos já haviam desfrutado de ambiente amável e encantador, observava placidamente o contentamento dos amigos ao receberem seus presentes e, compartilhando da alegria de vê-los desembrulhá-los euforicamente, se sentia presenteando também a sua alma.
De repente, percebeu um singelo toque em seu ombro. Ao se voltar para trás investigando o sucedido, observou um olhar de amor e generosidade. Uma senhora, cujo olhar concebeu inúmeras palavras, as quais ela pôde interpretar minuciosamente, havia lhe tocado; não apenas o ombro, mas a alma. Após este lapso no tempo, o qual sequestrou seu consciente por centésimos de segundo e já retomando a consciência, ouviu com doce voz: Aqui está o seu presente querida.
Ao receber o presente, agradeceu e sentiu certa constrição por perceber aquele amor sendo desprendido de forma tão graciosa. Preferiu aguardar para desfrutar sozinha do momento de desembrulhá-lo.
Ao retornar para o abrigo, quando já confortável em sua cama, foi compelida a abrir o presente e, para sua surpresa, se tratava de um diário. Folheava-lo gentilmente como se inconscientemente buscasse encontrar algo naquelas páginas em branco. De repente atentou-se para uma pequena dedicatória escrita delicadamente na capa interna:
“ Este diário pode retratar a sua vida. A história a ser impressa nestas páginas dependerá somente de você. Escolha com sabedoria cada palavra a ser escrita, pois delas procederão o empenho, a força, a coragem e a determinação necessárias para ressignificar a sua vida. A ti cabe a escolha. Escolha viver, escolha ser a diferença. Eu sei que você vai conseguir. Nós sabemos! Com amor...”
Madalena fechou o diário e o comprimiu em seu peito, deitando-se em posição fetal. Fechou os olhos e agradeceu a Deus pelo sinal. Agora ela sabia quem era e qual o seu propósito. Naquela noite, sentiu o afago novamente em seus cabelos. Sorriu e adormeceu...
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